Tapuio Sagrado

Tapuio acorda cedo. Já às 3:30 ou 4 da manhã os bichos da noite estão bocejando, voltando às suas tocas para descansar enquanto os bichos diurnos estão levantando, coçando a cabeça, se preparando para sair à primeira luz para procurar um belo café da manhã.

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Homem também chega cedo a Tapuio. Às 5:30, o proprietário vizinho (não morador, pois eu sou o único morador permanente em Tapuio) já estava subindo, ansioso para começar mais um dia de trabalho.

Parece que vai chover, e de fato espero que sim. Tem chovido bastante nesses dias, mas tem sido chuvas passageiras. Logo sai o sol e em três minutos a terra já está seca de novo. São as chuvas de outono. Servem para refrescar um pouco, aumentar a humidade (que é tão necessário), e estragar a estrada um pouco mais.

Neste momento, nuvens sobem e descem na montanha como rebanho de boi fantasma.

Água é vida. Isso ninguém discute. Sem água, a terra morre, o terreno perde completamente seu valor, e nós morremos. É fato incontestável.

E Tapuio é terra de água. Ou pelo menos era.

Nesta serra tem várias nascentes que fornecem água para muitas pessoas. Nem sei quantas nascentes tem, ou tinha. O outro dia alguém me falou de pelo menos 8 espalhadas pela área. Já vi umas. A água sai da terra como torneira ligada.

Ao mesmo tempo todos me falam de como a área tem mudado, secado. Nos anos 70 as nascentes produziam água com força. Agora, umas produzem apenas gotas. Outras nem gotas conseguem.

Me dizem que nos anos 60 e 70, aqui não fazia tanto calor quanto hoje, que no inverno às vezes aparecia aquela geada fina de orvalho congelado. Coco nem crescia, muito menos produzia. Agora tem vários pés produzindo mesmo mais para cima da minha casa. Caju ainda não cresce aqui, mas é só questão de tempo.

E água.

A água não nasce do nada. Vem da chuva. Sem a chuva, não há água, como vimos nos últimos verões. O vento que vem do oeste traz a chuva. Se o ar não tiver humidade, não vai ter chuva. Assim o nosso destino está intrinsecamente ligado ao que afeta a chuva, a humidade, e as correntes do ar no oeste do Brasil.

(A explicação para isso é fácil. Não tem mistério. Nas zonas tropicais, o vento vem do leste, não do oeste. E a latitude onde nós nos encontramos é zona árida, deserto, no mundo inteiro, menos aqui. Por que aqui não? Por que Deus é brasileiro? Não. Por causa do Andes. No norte do Brasil, o vento, entrando pelo leste, passa por cima do maior rio do mundo, passa por cima da maior floresta do mundo, absorvendo e soltando humidade (água, chuva). Esse vento bate com os Andes, e como não consegue subir e passar, é desviado para o sudeste, continuando o processo de absorver e soltar a água em forma de chuva. Se o vento que vier for seco, aqui vai virar deserto. Se continuar a destruição da Amazônia, nós morremos aqui. Pode até tentar reflorestar aqui, mas sem a chuva que vem de lá, não adianta. A chuva vem de lá. Sem a chuva, nossa região virá deserto.)

As nascentes nos mantêm. São as nascentes que formam os córregos e riachos que juntam com os rios da região. Se as nascentes secarem, nós morremos.

Presente. Não futuro. Não subjuntivo. Presente.

Como vê, as nascentes não nascem do nada. Precisam de chuva para recarregar as águas. Precisam de áreas de recarga para isso. Essas áreas deveriam ser vistas como sagradas, pois são as áreas que nos fornecem água. Tapuio, cheio de nascentes, é também uma área de recarga de nascentes. A chuva cai, entra na terra, e recarrega as nascentes que aqui nascem. É preciso cuidar desta área, uma área que nos dá vida, da mesma maneira que cuidaria da sua mãe. Vocês cuidam tanto das suas igrejas. Tapuio é mais sagrado que qualquer igreja, pois nos dá a substância sem qual não podemos viver: Água.

Daqui a pouco vai subir um “agricultor” com seus capangas, subindo a gritos igual demônios, semeando destruição por onde passam. Não têm nenhum amor pela terra. Só visam a riqueza que podem extrair da terra, sem se importarem se deixam a terra morta depois. Seus instrumentos são foice, roçadeira, veneno, e fogo. Nas áreas de recarga de nascentes onde a mata é mais importante, derrubam a mata a gritos e risadas, queimando a terra depois.  FullSizeRender 8 copy IMG_2647FullSizeRender 8Como assassinos alvoroçados por sangue, atacam a terra, derrubando e destruindo. Nem bicho escapa, pois suas tocas são destruídas e o que se expõe morre. Passam veneno por todo lado, mesmo ao lado de córregos e nascentes, o veneno penetrando a terra numa área de recarga de nascentes. Ao fim do dia, reagrupam no meio de toda essa destruição, sorriem admirados da destruição que causaram, jogam seu lixo na terra (homem é mais!), e descem.

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Eles não são excepcionais. De fato, é um comportamento lamentavelmente normal.

Mas a área é excepcional. A água nasce aqui. A área é frágil. Pequenos distúrbios aqui podem ter consequências muito maiores em baixo. Vocês em baixo dependem da água que nasce aqui. Dependem da mata para que a terra não caia em cima das suas cabeças. Dependem da estabilidade da terra para que o mar não encher de sedimento.

Em baixo, onde a terra é muito mais profunda e onde a água acumula, preferiria não ver esse comportamento, mas a terra tem capacidade de regenerar melhor. Queimem toda a cidade se quiserem. A terra conseguirá regenerar (e provavelmente a natureza lhes agradecerá).

Queima aqui em cima, e cria deserto, sem capacidade de regenerar, destruindo não só a terra senão também seu futuro e o futuro dos seus filhos.

Eu não estou dizendo que não deveria ter agricultura aqui em Tapuio. Mas a agricultura deveria ser sustentável, adaptada às condições de Tapuio sem precisar modificar o meio ambiente, sem ser destrutiva.

Chegou a hora de desenvolver uma agricultura brasileira, uma agricultura que não depende de práticas europeias que só destroem a natureza (por aqui ser diferente da Europa), que não favorece uma dieta europeia ou colonial.

Chegou a hora de amar essa terra, aceitar o que ela nos dá ao invés de tentar domá-la, escravizá-la.

Tenho acompanhado o drama político dos últimos dias. Entendo a importância do momento, mas vejo talvez de forma diferente dos demais. Os brasileiros correm para lá e para cá. gritando e fazendo escândalos, só para continuar com o mesmo processo depois. Tira Dilma, coloca outro igual ou pior (pois parece que o brasileiro não quer democracia, quer rei). Nada muda, porque em 516 anos, o brasileiro nunca aprendeu a amar essa terra como brasileiro. Ele só ama o que consegue extrair agora, deixando as futuras gerações a se virarem. É o padrão de processo para tudo aqui no Brasil: a comida, a agricultura, o lazer, a estratificação da sociedade, a construção de infra-estrutura (e a sua falta), e a política. A solução dessa “crise” não se encontra em uma reforma política. Se encontra em uma reforma cultural. Se encontra em um ambientalismo nacional, uma identidade que enfim mata o colono e assume uma natureza nata aqui no Brasil sem nostalgia da Europa. A terra é a única coisa que todos nós temos em comum. cuidar da terra obriga o brasileiro a ser democrático, obriga o brasileiro a pensar de algo ou alguém além do seu próprio futuro, obriga o brasileiro a pensar no Brasil inteiro como sua sociedade. O único jeito é de ser, enfim, brasileiro que vê a terra como parceiro e não como escravo.

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