Imigrante

Estou descendo na moto e o vizinho está andando na minha frente, no meio da estrada, sem me deixar passar, ciente da minha presença.

——– Mais tarde ——–

Chego em casa e encontro a porta no chão da sala, umas janelas quebradas, tudo dentro da casa virado. A polícia fala que não consegue subir e recomenda eu vender e ir embora.

——– Coisas que a polícia me fala ——–

  • “O que está fazendo aqui?”
  • “Vende aquilo e vai embora!”
  • “Quer segurança? Vende aquilo e vai embora daqui!”
  • “Nós não podemos colocar a delegacia ao lado da sua casa!”
  • “Pode fazer ocorrência se quiser.”
  • “Quem mandou você morar lá?”

——– Uma noite ——–

“190. Qual a sua emergência?”

“Alguém acaba de disparar uma arma aqui na frente da minha casa. A pessoa ainda está aqui no mato ao lado da casa.”

“Notificamos a polícia da sua área e uma viatura já está a caminho.”

——– 2 minutos depois ——–

“Boa noite. O senhor é o americano que ligou para a polícia?”

“Sim, sou.”

“Olha, não tem como viatura subir aí.”

“Mas o homem está no mato aqui na minha frente. Tem arma.”

“Mas a viatura não tem como subir aí. Não temos como chegar no local. Se precisar de alguma coisa, é só ligar.” Clic!

———– Outras conversas e comentários ———-

“Você só tem (4, 6, 8, 10, 12) anos aqui no Brasil. É muito pouco tempo para entender o país.” Aparentemente, a experiência do imigrante, pessoa que estuda e analisa cada aspecto da vida brasileira – língua, comida, música, geografia, política, até a maneira de andar e mover o corpo – não é legítima. O único jeito de entender o país é nascer aqui.

“O brasileiro pensa… O brasileiro gosta de…. O brasileiro quer….” Como se diversidade não existisse aqui no quinto maior país do mundo.

Meu favorito: “Vende aquela casa e vem morar na cidade. Eu fico com você. Eu posso até ir com você para os Estados Unidos.” E quando explico que não pretendo voltar para os Estados Unidos: “Oh. Ok. Tchau!”

——– // ——–

Chego em casa e encontro fezes jogadas em cima da casa. Chego em casa e encontro fezes jogadas em cima da casa. Chego em casa e encontro fezes jogadas em cima da casa. Chego em casa e encontro fezes esfregadas na parede. Chego em casa e encontro fezes em volta da casa e nas árvores.

Não entendem por que saí do meu país para morar aqui. Dizem que sou foragido. Dizem que sou espião. Dizem que sou agente das forças antidrogas americanas.

Dizem que sou fedorento.

Dizem que sou viado e perguntam aos meus amigos quanto pago para transar comigo.

Acham que não sei o que dizem de mim. Acham que meus amigos não me contam, pois não se pode ser amigo verdadeiro de estrangeiro.

Dizem que tem que cobrar mais de mim, pois americano tem dinheiro.

Se eu reclamar ou (pior) chorar, dizem que tenho que ignorar, esquecer, perdoar, aceitar. Dizem que é assim mesmo. Dizem que eles passam por pior, como se fosse uma concorrência.

Dizem que se eu não gostar, posso ir embora.

Batem, me chamando de zé mané, que “nem brasileiro é”, como se fosse permissível bater em (dar lição a) estrangeiro. Afinal de contas, estamos aqui roubando seus trabalhos e mudando a sua cultura, né?

Ao reclamar, alguém me falou, “Estava esperando o quê? Ajuda? Brasileiro vai lá limpar a bosta do americano. Agora é a sua vez!”

Pessoas com nomes portugueses e italianos e árabes falando português cultivando café africano e banana asiática, criando boi africano e indiano, pessoas que idolatram a europa e os dois países anglófonos da América do Norte, xingando quem vem aqui para “roubar nossos trabalhos, acabar com nossos remédios, e mudar nossa cultura”.

O vizinho, homem rabugento que uma vez me chamou de viado vagabundo, vai até a minha casa para arrumar confusão por uma coisa que não o envolve e que não o afeta em nada só porque nasceu zangado e quer briga com alguém e o estrangeiro é o menos amparado. Pode brigar, dizer o que quiser, o estrangeiro não pode fazer nada.

Outro vizinho, chamado para fazer depoimento em um processo criminal, perguntou se ele seria suspeito caso algo acontecesse com “o americano”. Pergunta estranha, não acha?

Outro vizinho berra que Bolsonaro fez grande coisa! Vai ter arma! Vai ter arma! Ele vai morar aqui e vai ter arma e aí vou ver! Grita que ele é referência em Tapuio, que falam o nome dele quando falam do lugar (lamento lhe informar que ninguém é referência em Tapuio e mal sabem o nome dele, é conhecido como o marido da….). Não se suja em falar com alguém tão insignificante como eu, forasteiro burro que não entende. Quando me passa na estrada, fica olhando de um lado para o outro, a boca aberta de indignação. Quando anda na minha frente, ciente da minha presença, anda no meio da estrada sem deixar eu passar.

Tudo bem. Não tenho pressa. Paro, espero, reflito.

Também não oprimirás o estrangeiro; porque vós conheceis o coração do estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.

Êxodo 23:9

Há em torno de 2,5 milhões de brasileiros morando no exterior (ou mais, pois é preciso atualizar os dados). No ranking de países que mais mandam emigrantes, o Brasil ocupa a 17ª posição. O destino desses emigrantes? Principalmente América do Norte (mais de 1.000.000).

Só em 2019, é possível que mais de 1 milhão de brasileiros tenham emigrado.

Brasileiros no exterior

Quantos estrangeiros moram nos Estados Unidos? Mais de quarenta e seis milhões (46.627.102). Nos Estados Unidos, 14,3% da população é imigrante.

E aqui no Brasil? O pensamento popular é que tem muitos estrangeiros morando no país, acabando com os medicamentos, roubando trabalhos, alterando a cultura, infectando o Brasil com noções e estilos de vida que os brasileiros não querem. Quantos estrangeiros residem no país? 1.847.274. Não chega a ser nem 1% da população (0,9%). No ranking de países que recebem imigrantes, o Brasil está em 32º lugar. Num país cuja população é composta de 500 anos de imigrantes procurando melhorar suas vidas, é muito pouco atualmente.

Achamos que a Terra nos pertence, mas estamos enganados.

Acham que o Brasil lhes pertence, mas estão enganados.

A Terra não pertence a ninguém. O Brasil não tem dono. A cultura é fluida, aberta a interpretação, aberta a influências. A sua nostalgia é irrelevante.

O outro dia, fui renovar a minha carteira de identidade na PF em Vila Velha. A sala estava cheia de imigrantes: árabes, congoleses, chineses, argentinos, e sim, até americanos. A fala era diversa e se ouvia inglês. espanhol, chinês, francês… O português ou fluía da boca ou casava-se com as outras línguas. Ouvi da mulher na janela ao lado: Mi filha estuda en la escuela.

Eu me senti imensamente comovido entre tanta gente que escolheu, como eu, este país para recriarmo-nos. Vocês são o Brasil. Mas nós também somos. Eu também sou. O futuro que me resta, vou encontrar aqui. Meu futuro é brasileiro e o brasileiro.

(Vocês podem me dizer o mesmo?)

Quer andar na minha frente sem me deixar passar, a boca aberta de indignação? Tudo bem. Eu sei aonde vai. Eu já sei onde vai parar. (Você sempre faz a mesma coisa da mesma maneira.) Sou imigrante. Tenho paciência. Ainda estou plantando as minhas sementes.

Salve Tapuio

Leave a Reply