Nasci com defeito

Escrevi o seguinte umas duas ou três semanas atrás, mas nunca postei. Aqui está:

Pneu furado então tive que subir a pé (obrigado Sérgio pela carona até a entrada de Tapuio) às 8:30 da noite numa estrada que é pouco mais do que trilha de tatu (e com certeza vai ficar assim até a próxima eleição) na escuridão sem lanterna.

Vocês acham que estou reclamando?

Foi uma noite linda, fria, estrelada aqui em cima. Bichos silenciosos andavam na estrada em minha frente, bichos que não consegui identificar, pois esqueci meus óculos de nightvision em  casa (todo espião tem, né?).

Não gosto de dormir quando estou aqui em cima. Quero passar a noite andando na mata, vendo os bichos, as plantas, sentindo o cheiro das flores que só abrem à noite. Mas não resisti. Às 10 da noite, eu já estava roncando. Acordei uma vez durante a noite: algum bicho estava dançando em cima da casa. Mas fora disso, dormi feito pedra.

Estou acostumado a levantar cedo, entre 4 e 5 da manhã, mas hoje dormi muito tarde e não levantei até 6. Não consigo descansar em Iconha então tenho que descansar o suficiente em dois dias para aguentar os 5 que fico na cidade.

O dia nasceu diferente hoje: frio, porém com um toque de calor, como se o calor fosse uma mão com vários dedos com os quais cutucava a gente.

Fiz meu café (café faz tudo melhor) eu saí para ver tudo que não consegui ver durante a noite. Foi quando escutei os gritos em cima.

Bom, pode ser que uns cidadãos que gostam da natureza tanto quanto eu decidiram andar no meio do mato no alto de Tapuio. Pode ser. E pode ser que porcos voam.

Tapuio está cheio de ninhos neste momento, ninhos com ovos e passarinhos. Em volta da minha casa tem ninhos que já estão no segundo turno de reprodução desde outubro. As pessoas vêm para pegar passarinhos e ovos.

Realmente, eu não entendo essa guerra que homem faz contra pássaros. Os mata com veneno e pedras e balas, os come, e os engaiola. O homem diz que gosta do pássaro, o engaiola e o leva para passear como se fosse cachorro. Não faz o menor sentido. Pássaro nasceu para voar. Se homem realmente gostasse de pássaro, o respeitaria, o deixaria em liberdade.

Acho que a única coisa que homem gosta de verdade é uma gaiola. Parece que tem inveja dos bichos que vivem sem leis, sem religiões, sem deuses, sem precisar de levantar às 6 da manhã para bater hora num trabalho de merda ganhando um salário que mal cobre as despesas, e por isso então os bichos pagam o preço da vida frustrada de homem com a sua liberdade e até com a sua vida.

Boi fica preso ou dentro de um curral ou num pasto até o dia de levá-lo para matar. Bezerro destinado para vitela não pode nem mexer durante a sua curta vida— fica amarrado ou acorrentado até levá-lo para transformá-lo em alegria num prato. Galinha vive a sua vida inteira dentro de uma gaiola tão pequena que não pode nem mexer e acaba seus dias decapitada e desplumada, pronto para o delírio do consumidor (tem quem prefere “galinha caipira” não porque tem uma vida mais livre, mas porque acha a sua carne mais deliciosa).

Até o cachorro, o suposto melhor amigo do homem, frequentemente se encontra amarrado e abandonado, uivando a sua miséria inutilmente.

Bicho que homem não consegue confinar, ele procura um pretexto para matar até extinção. Elefantes, rinocerontes, tubarões, baleias…. Sabiam que esse bacalhau que vocês tanto gostam está quase extinto, como certas espécies de atum, e o ser humano agora os cria dentro de enormes gaiolas no meio do mar?

O que é um zoológico senão um presídio?

Até seus deuses, de qual há inúmeros na terra, o ser humano mantém confinados em seus templos e sinagogas e mesquitas e igrejas.

Faz sentido isso?

Eu não vejo.

Acho que nasci com defeito.

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