Tapuio Salva

Quando eu era criança, achava que origem, o fato de ter nascido em algum lugar, conferia um conhecimento do lugar inacessível a quem vinha de fora, como se a minha visão de criança, as minhas memórias de criança, as minhas experiências fossem as experiências, o conhecimento, a visão do lugar.

Como se conhecimento do lugar girasse em torno da minha experiência.

Como se nostalgia da minha visão infantil fosse a verdade e a experiência de qualquer um de fora falsa, incapaz de entender o que eu entendi, entendi por fato de ter nascido lá.

Nasci no estado de Montana, na cidade de Great Falls, umas duas horas da fronteira com o Canadá.

Onde eu nasci. O que sei desse lugar?

O que lembro do lugar do meu nascimento? O frio, o cheiro de cerveja, o azul, um azul imenso que cobria céu e paredes. Lembro que gostei do frio, não gostei do cheiro de cerveja, e me perdia no azul.

O que significam essas memórias, essas experiências? Que Montana cheira a cerveja? Que Montana é azul?

Significam só que eu era criança e a minha visão era muito limitada.

Não significam nada.

Difícil é viver no presente. Mais difícil ainda enfrentar um futuro incerto. Recorremos à nostalgia de um tempo, uma infância, um lugar que mal entendíamos (entendíamos como criança entende) e falamos que éramos felizes e não sabíamos.

Passei quase toda a minha infância e o início da minha adolescência no estado do Ohio. Lembro dos verões suaves e verdes. Lembro dos outonos com o sabor de semente de girassol e o cheiro de maçã. Inverno era branco e marrom, um céu cinza de nuvens carregadas de neve.

A primavera me representava. Tudo novo, brotando verde brilhante forjando um caminho num mundo feroz e caótico. Tornados caíam de um céu preto e verde de hematoma, rasgando a terra. A chuva era quase incessante, igual às guerras que formaram o fundo da minha infância e adolescência, guerras militar, racial, social. E eu, pequeno explorador das estações e da natureza, explorava a minha própria natureza, uma natureza que me afastava dos outros. Eu era só e luxuriosamente torturado em minha solidão. Eu me identificava nos ventos furiosos e nos tornados e nas chuvas incessantes e nas guerras incessantes, só e batalhando incessantemente, um verdadeiro americano. E me identificava nos momentos de sol que quebrava as nuvens por força bruta da sua luz a do seu calor, brilhando e revelando a complexa beleza de crocus e íris e violetas.

Imagem bastante típica da área onde passei a maior parte da minha infância

Eu passava horas e horas numa mata que começou justo ao lado da casa, uma mata que me parecia imensa e densa mas que na realidade era provavelmente pequena. Eu era criança e tudo me parecia grande. Eu explorava caminhos e buracos, comia flores e frutas selvagens, dormia nos galhos de árvores. Via coelhos e cobras e borboletas e pássaros. Andava boquiaberta! O luxo, a imensidão, a pungência da natureza me maravilhava. Sonho até hoje com aquela mata. Me sentia feliz naqueles momentos. Só, mas feliz.

Hoje, com as exigências de vida adulta, olho com nostalgia, com saudade daqueles tempos de infância. Como dizem aqui, eu era feliz e nem sabia.

Só que não.

Eu não era feliz. Eu passava momentos de felicidade, a felicidade de criança, sem as preocupações de vida adulta. Mas qualquer nostalgia é falsa, a nostalgia de criança.

Várias vezes durante a minha vida, pensei em voltar a ver os lugares da minha infância, sentir de novo aqueles momentos de felicidade. Mas acho que tudo terá mudado e eu não reconheceria nada. Verei que o céu não é tão azul quanto lembro e me sentirei decepcionado.

E não sou muito nostálgico. Fui formado por meu passado, mas prefiro me manter no presente com o olho no futuro.

Vim aqui ao Brasil pela primeira vez antes de muitos de vocês terem nascido, 42 anos atrás. Viajei de São Paulo até Manaus, de Salvador até Campo Grande (Mato Grosso naquela época). Lembro o Rio Iconha como rio e não como esse córrego largo que vejo hoje. Se procurar no meu face, encontrará uma foto minha tirada em Iriri de quando eu tinha 17 anos e cabelo. (Sem sorriso. Não gosto de sorrir nas fotos. Nunca gostei. Meu rosto é o que é, sem apologias.)

Quer sorriso? Vem andar na mata comigo.

A primeira vez que eu vim ao Brasil, Geisel era presidente. A segunda vez, era Sarney. Cheguei aqui esta vez no último mandato do Lula. Conheci o Brasil em três fases diferentes, e em três fases diferentes da minha vida. Esta vez, tenho 12 anos morando aqui. E ainda tem quem quer me ensinar, quem quer me iluminar quanto ao pensamento brasileiro, como se durante todos esses anos nunca cheguei a entender a(s) cultura(s) brasileira(s). Como se existisse um só pensamento, uma só expressão cultural que me escapa. Como se eles pudessem falar em nome de todos os brasileiros. Como se as minhas percepções e as minhas experiências não valessem nada.

Vejo isso em relação a Tapuio. Estou morando aqui desde 2008 e ainda tem quem vem a minha casa me falar que não consigo entender esse lugar. Sinto muito, mas o lugar é fácil entender. Não obstante a sua carga emocional e nostálgica, o lugar é fácil entender e as minhas experiências e a minha compreensão não são menos legítimas só por não ter nascido aqui.

Uma vez um rapaz veio aqui, o capanga dele a tiracolo, com a intenção de me intimidar. Além de falar muita merda de mim, gritou como ele nasceu aqui, é daqui, conhece cada pedra (todo mundo sempre fala que conhece cada pedra), que esse lugar corre nas veias dele, que ele ama esse lugar. Enquanto gritava isso, tirou cigarro do maço e acendeu com fósforo que jogou no chão. Fumou o cigarro furiosamente e logo também jogou no chão. Se fosse o último cigarro do maço, também teria jogado no chão, pois já achei vários amassados e jogados no chão aqui. Esse mesmo rapaz acha necessário capinar e roçar áreas onde não cultiva nada, pois, nas palavras dele, senão, dá cobra. Aparentemente o amor do lugar que sente não inclui seus habitantes naturais. Flagrei esse mesmo rapaz guiando safari quando ele, descendo numa aranha, deparou comigo na estrada. A aranha foi modificada com banquinho elevado e no banquinho estava sentado um rapaz com espingarda. O rapaz com a espingarda mantinha-a apontada em mim.

Tanto amor do lugar ninguém precisa.

Outro rapaz que também supostamente tem Tapuio nas veias por ter passado a infância aqui subiu uma vez com escada e cunhado para catar as poucas orquídeas de Tapuio. Cataram inclusive várias daqui de casa.

É muito amor.

Os caçadores que sobem para depredar a natureza são sempre vinculados de uma forma ou outra a pessoas daqui, pessoas que supostamente amam esse lugar.

Por uns anos, eu dava aula e ficava em Iconha e Piúma de segunda a sexta, voltando para casa nas sextas à tarde para passar o fim de semana em Tapuio. Nesse período, invasão da minha casa foi constante. Nas sextas eu voltava para encontrar fezes nas paredes ou depositadas em vários pontos estratégicos, portas arrombadas, minhas coisas espalhadas pela casa e quintal. Uma vez, alguém levou toda a minha roupa, me deixando só com a roupa que estava no corpo.

Segunda-feira sempre me encontrava na delegacia, registrando BOs, que logo assinados foram diligentemente guardados numa pasta em uma gaveta, alimentando traças.

Decidi resolver a situação com as minhas próprias mãos, literalmente. Subi a pé sem lanterna numa segunda às 11 da noite, peguei uma vara de bambu, e escondido na casa e sem ligar nem luz nem celular, fiquei esperando alguém se atrever a entrar.

Fiquei assim de segunda até quinta à noite. Naquela semana, ninguém entrou. Mas vários andaram em volta da casa, pegando ferramentas, mijando, tomando água da torneira, etc. Na quinta à tarde, dois rapazes apareceram, falando alto, me criticando severamente pela maneira que eu deixava a mata crescer em volta da casa. “Capim puro!” um deles exclamou.

Não era capim puro, mas entendi o que quis dizer. Deixo a mata crescer. Não sou produtor e não vejo a necessidade de ficar horas e horas curvado embaixo do sol, foice na mão, batalhando com a natureza. Quero a natureza em volta. Quero os bichos que se abrigam naquelas folhas e capim e galhos caídos. Quer ver eu sorrir? Vem andar na mata comigo!

Não foi a primeira vez que fui criticado por deixar a mata crescer, nem a última. A última foi recentemente quando um proprietário vizinho, antes de parar de falar comigo (não faço ideia do porquê). Me falou de um senhor que morava aqui em cima uns 20 anos atrás. Cada manhã ele varria o quintal e a estrada, deixando tudo limpinho. Limpinho quer dizer sem traços da natureza.

Me relatou isso com a intenção de me envergonhar. Não funcionou, mas me pôs a pensar: esse homem que quer me envergonhar por não manter tudo “limpinho” em volta da minha casa adora comer biscoitos. Como é que eu sei? Porque joga as embalagens por todo lado. Chupa uma bala e joga o plástico no chão. Encontro latas de cerveja à beira da estrada, a mesma marca nas latas que vi em volta da casa dele. “Lixo” é folha e galho e capim. Lixo é deixar a natureza crescer.

Uma vez um casal parou ao lado da minha casa. Acho que um bambu tinha caído na estrada e enquanto ele se ocupava em tirar o bambu, ela perguntou se tenho foice. Respondi que sim, passei para ela, e sem dizer mais nada, ela atacou a mata que estava crescendo na beira da estrada, cortando galhos e capim e pequenas árvores. Como a minha foice está tão cega que não corta nem manteiga, ela logo desistiu, indignada e revoltada. Só faltou me chamar de preguiçoso (o matador de cobras já me chamou de preguiçoso).

Como sou pensador, pensei muito sobre esses e outros casos. Vejo pessoas varrendo os quintais onde não tem quase nada plantado. Quase todo mundo tem 2, 3, 4, 5, 6 cachorros em volta da casa para “proteção,” a ameaça sendo a natureza. Todos têm nojo e pavor de cobra, aranha, sapo, achando que debaixo de toda folha tem um sapo ou uma cobra planejando ataques. Na natureza tem ameaças. Melhor controlar ou mesmo acabar com a natureza.

Nem toda a natureza é ameaçante. Passarinhos são bonitinhos, melhor ainda em gaiolas.

Pensei: Essa é a mentalidade de colonizador, de quem é de fora, de quem veio para dominar, domar, impor, colonizar. Trazem as plantas e os bichos das suas terras com a intenção de recriar aquela vida na terra nova. Como não entendem (nem querem entender) a natureza nativa, a sua presença é vista como um impedimento, uma falha, uma ameaça a progresso. Quantas vezes já ouvimos esse discurso de desenvolvimento através de desmatamento? Os europeus e americanos fizeram e agora é a nossa vez! Ao invés de ver a natureza nativa como parceira, é vista como ameaça “à nossa cultura, ao nosso desenvolvimento, ao nosso estilo de vida!”

Ao invés de adotar e assumir uma identidade mais adaptada a essa terra, é preciso forçar essa terra a nos aceitar, é preciso que a terra se submeta à vontade do colonizador. Vai ter boi sim, mesmo se destrói absolutamente TUDO! O colonizador nunca aprendeu a viver de outro jeito, de um jeito mais nativo, e tem raiva de quem faz.

519 anos e ainda não consegue se livrar dessa herança colonial. A língua é colonial. A infraestrutura (ou a sua falta) é colonial. A comida é colonial. As religiões são coloniais. A corrupção é colonial. A vontade de ter homem forte em poder é colonial.

(Quem sabe esse homem forte consiga nos guiar bem longe do colonialismo!)

E é essa herança colonial que forjou o indivíduo que sonha em ser ferozmente individualista, forte, imponente, mas, faltando referência maior, não sabe e não consegue desenvolver essa independência individualista (pois isso se adquire com educação) e é forçado a depender da cooperação, geralmente dada com má vontade, dos outros. É Fabiano do livro Vidas Secas.

Ouço variações desse argumento em relação a Tapuio. Neste momento são 7 donos só neste lado de Tapuio. Do lado do Cruzeiro tem mais ainda. Tem pouca vigilância e ainda menos cooperação. Quer dizer, é como qualquer outro lugar. Se não incomodar, consideração se dá. Se incomodar, problema teu. Uma vez, no período quando eu passava a semana em Iconha, alguém decidiu vandalizar a casa. Portas arrombadas e quebradas, janelas quebradas, meus pertences quebrados e jogados por todo lado, cano de água cortado em mil pedaços. Todos aqui viram. Ninguém achou importante me informar. Geralmente sei quem é o infrator, mesmo se não posso provar. Quem cortou o cabo de energia? Sei. Quem furtou toda minha roupa? Sei. Quem pegou as orquídeas e as joias e pegava a comida e quebrou o rádio e etc etc etc? Sei. Não posso provar, mas sei. Quem foi naquela vez que cheguei a encontrar tanta destruição, não sei. Mas os vizinhos sabem. A resposta deles, como a resposta da polícia, foi: Quem mandou você morar em Tapuio? Cheguei a ouvir de um vizinho: “Quem mandou Zé vender a qualquer um?” Eu sou o qualquer um.

Cada um acha que ele é quem vai fazer a diferença aqui, que é ele que vai impor a lei, controlar qualquer bagunça. Um proprietário me falou que ele representa Tapuio, que quando falam de Tapuio, falam o nome dele. Lamento lhe informar, mas muitos sequer sabem seu nome. Outros dizem que eu represento Tapuio, uma noção que rejeito violentamente. Qualquer noção de representação seria puro egoísmo, a vontade de se impor nessa terra, mais um que quer domar, limpar, controlar essa terra. Ao invés de deixar Tapuio formar e influenciar a sua vida, quer recriar Tapuio na imagem do ego deles, forçar Tapuio a se curvar diante da força bruta do ego deles, servir o egoísmo deles.

Não nasci com o cheiro de flor de café enchendo as minhas narinas infantis, o canto de sabiá me acordando dos meus sonhos. Os sons e os cheiros da minha infância eram diferentes. Também, talvez devido a meu afastamento social, nunca se desenvolveu em mim essa noção de que a natureza existe em serviço aos desejos e às vontades do homem, noção reforçada pelos ensinamentos das religiões coloniais às quais não pertenço.

Não me interessa saber o que Tapuio representa para vocês. Seu egoísmo não me interessa. Me interessa saber como podemos nos adaptar a Tapuio, nos criar em sua imagem. Não podemos salvar Tapuio. Nenhuma pessoa consegue salvar Tapuio. Mas Tapuio pode nos salvar, se abandonarmos o egoísmo e permitirmos.

As texturas, as cores, a luxuosidade de Tapuio

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